segunda-feira, 15 de março de 2010

Entre o mar e a piscina de águas calmas


O mar, com suas águas temperamentais, guardam em mim significados próprios. Nos meus sonhos elas sempre simbolizam desejo. E não raro aparecem cercadas por um muro enorme que me impede de tocá-las. Outras vezes se levantam em ondas gigantes, prestes a me engolir. Assim é o desejo. Tantas vezes não podemos tocar o que queremos... Outras tantas sentimos que se chegarmos um pouco mais perto, se tocarmos por um instante, seremos devorados por ele.

E no meu último sonho com o mar, ou seja, com as inquietações do desejo, o que se colocava era um ultimato, uma escolha. Eu estava curiosamente dentro de uma colher. Suspensa há centenas de metros do chão. Abaixo estava, de um lado o mar, do outro uma bela piscina de águas azuis. Era urgente a minha decisão. O sol me queimava a pele. Eu me equilibrava no espaço mínimo de uma colher. Fiquei me questionando o sentido desse sonho. E percebi que simbolizava as grandes escolhas da vida. Quase sempre as decisões são entre mares imprevisíveis e piscinas de águas calmas.

O mar seduz. É desejo exalando por todos os poros. Santuário onde cantam sereias. E os nossos olhos, impregnados de monotonia, enchem-se com a grandeza de suas possibilidades. Temos o ímpeto de experimentar novas sensações. E nos colocamos a imaginar águas calmas, claras. O aconchego de águas quentes, o colorido dos cardumes de peixinhos... Os desejos são sempre assim, nos iludem com suas promessas de beleza. E nos esquecemos de que o mar nada garante. Ele é imprevisível, instável, e sem cerimônias passa da mansidão aos dias de ressaca. Escolher o mar é optar por viver intensamente, entre afãs de euforia e noites de depressão. Desassossego demais. Acaba chegando o momento em que precisamos de descanso. Da calmaria para recuperar o fôlego.

A piscina é sem sobressaltos. Lá é possível prever o dia de amanhã, e o de depois... Sem surpresas. É nela que mora a idéia de “felizes para sempre”. Nas histórias infantis e nas novelas o final feliz é como uma piscina de águas calmas, nunca o mar. Está tudo resolvido e pronto. Basta viver da mesma forma um dia de cada vez, sob a proteção da estabilidade. E seria perfeito se nosso coração ficasse para sempre ali, quietinho e confortável. Mas a inquietação faz parte da gente. Com o tempo as águas calmas já não nos saciam. Ficamos com a sensação de que falta um pedaço. Alguma coisa que nos balance, que faça a gente se sentir mais vivo. E vem de novo a vontade de ir ter com o mar.

A própria vida parece sugerir que sejamos cíclicos. Tempos de mar e tempos de calmaria. É assim que os sentimentos nos conduzem com a autoridade de um leão. Quando os ventos sopram dentro da gente é como se não houvesse saída. Ou nos entregamos às mudanças ou nos tornamos tristes. E seria tão fácil se pudéssemos transitar pelas escolhas ao bel prazer das nossas vontades, sem pensar no que ficou, sem esperar demais do que está por vir e, principalmente, com possibilidades de retorno...

Mas a vida não é assim. Ela nos pede coragem, porque não existem garantias. Ao voltarmos para o mar a piscina deixa de ser nossa. E suas águas calmas poderão dar lugar à outra pessoa que deseje sua tranqüilidade. É bastante possível que não possamos retornar a ela quando chegar o cansaço do mar. Será preciso buscar outro lugar de calmaria. Talvez a busca demore, sendo fatal permanecer à deriva num mar exaustivo. E pode ser que a nova piscina não seja tão calma e aconchegante quanto a que deixamos para trás. Ou quem sabe seja muito melhor... Tudo pode acontecer. Fora a possibilidade de não querermos nunca mais voltar do mar.

Meu sonho terminou sem que a escolha fosse feita. Acordei sem que tivesse pulado para lado algum. Mas na vida não há como fugir às escolhas. Não optar é ficar em suspenso, sob o sofrimento do calor escaldante, num espaço cada vez menor. É preciso coragem para pular.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Todas as escolhas, menos essas

Quando pequena, certa vez, ao deitar-me na cama para dormir, dei com um arrepio na espinha: eu haveria de ser eu por toda a vida! Apenas eu e ninguém mais. Descobri-me prisioneira de mim mesma. Lembro que me pareceu tão assustador... Senti-me sozinha, sentada num canto de mim como quem se vê trancado entre quatro paredes. E as chaves perdidas, para sempre. Pareceu-me absurdo que jamais pudesse estar em ninguém mais. Conhecer-lhe as conclusões, as prendas, as malícias... Caminhar por seu íntimo espiando por suas janelas e tendo à frente as coisas como lhe parecem ser. Não como simples observadora das ações do outro, mas vivendo o próprio outro. Por breves instantes, que fosse. Quis inventar um caminho! Pus-me a imaginar, na minha crença infantil, que ainda haveriam de achar um jeito. Afinal os anos passavam, várias invenções iam pipocando daqui e dali... Haveriam de achar as chaves que nos libertassem de tamanha condenação. Pensei, pensei... e por fim dormi convencida de que não havia meios.

Mas minhas angústias noturnas não pararam aí. No dia seguinte meu pavor só fez aumentar quando uma sentença ainda mais grave soou dentro de mim: ‘Você há de morrer. Desde que se tenha nascido, terá que morrer um dia. Não há outra saída.’ Por Deus, nunca tive mais forte sensação de finitude. Era como estar num trem desgovernado rumo a um penhasco. Eu vivia, e por isso caminhava para a morte. Não havia modo de atrasar o destino, pronto a cumprir-se. Cada minuto passado, cada dia, dava-me a certeza de que o fim estaria mais e mais próximo. Desejei nem ter nascido, posto que então eu não teria outra escolha, senão morrer.



Eu tinha apenas seis anos. Estranho como tão pequena eu já me deparava com essas questões, e mais estranho que ainda hoje as questões sejam as mesmas. A verdade é que na vida temos todas as escolhas, menos essas. Não podemos deixar de ser quem somos. Nem podemos evitar a morte.